Título original: I’m thinking of ending things
Ano: 2016
Autor: Iain Reid
Assim que eu tive notícias que o novo filme do Charlie Kaufman, roteirista e diretor que eu muito admiro, seria baseado em um livro e disponibilizado no Netflix, tive imediata curiosidade de conhecer o material original. Notável por suas ideias mirabolantes e imensa criatividade, eu tinha certeza que ele teria escolhido uma história diferente e intrigante.

Além da versão impressa, é possível ler a obra no Kindle, dispositivo que mudou a minha relação com a leitura ao permitir carregar uma quantidade enorme de livros em um aparelho cuja bateria dura por vários dias, tem uma tela que não cansa os olhos, dá acesso imediato a dicionários de significado e tradução, marca e compila trechos e outras vantagens. Eu aproveitei para comprar a versão em inglês, chamada I’m thinking of ending things. Terminada a leitura, posso dizer que a minha expectativa de uma obra complexa foi plenamente satisfeita.

O autor Iain Reid iniciou sua carreira escrevendo artigos e colunas para revistas e jornais, incluindo o National Post e o The New Yorker, logo após se formar no colégio. Após trabalhos em que relata suas memórias, escreveu o Eu estou pensando em acabar com tudo, primeiro romance lançado lá fora em 2016 e traduzido para o português no ano seguinte. O segundo livro é Intruso, de 2018, que eu já estou pensando em ler também. Ambos investem no suspense e em referências ao terror clássico, mas também trazem elementos de drama e questões filosóficas.
A história mostra Jake e sua namorada, que narra a história, em um carro a caminho da fazenda dos pais do rapaz. Durante a longa viagem por estradas desertas e escuras, em meio a um clima gelado, ele parece empolgado com a possibilidade de apresentá-la à sua família, enquanto a garota se mostra tensa por estar recebendo ligações de um homem misterioso, relembra fatos marcantes de seu passado e pensa em encerrar o relacionamento. Curto e denso, o livro trabalha bem o medo provocado pela sensação de uma tragédia iminente.

Embora tenha uma premissa simples e poucos acontecimentos, a escrita primorosa consegue envolver o leitor desde o começo ao criar uma tensão crescente. O que eu mais gostei foi justamente a ambientação e o clima de suspense que me levaram a terminar a história em pouco tempo, pois não conseguia parar de ler de tanta curiosidade. Desde o começo você sente que tem algo estranho com o casal, uma ameaça de que eles talvez não se deveriam estar juntos em um ambiente potencialmente hostil. O sentimento é consequência não apenas dos fatos narrados, mas também da escrita, que parece conter erros e inconsistências. Na verdade, tudo é intencional justamente para causar estranheza.

Embora seja focado nos dois personagens principais, é dada grande importância aos poucos cenários, aos objetos, aos animais, ao clima e outros elementos. Tudo parece estar ligado e afeta profundamente o casal, sendo interessante até mesmo fazer uma segunda leitura para entender melhor como cada peça desse mistério formado por pequenos detalhes se encaixam para fazer com que o final faça todo o sentido.

Assim como em muitos livros do gênero, a narrativa é construída de forma a surpreender o leitor, embora pistas sejam deixadas ao longo de toda a narrativa. No fim das contas, não é difícil entender o que acontece, mas há extensas discussões pelos fóruns da internet para esmiuçar cada aspecto da narrativa e os acontecimentos. Infelizmente, não é possível falar mais sem estragar a experiência da leitura. Por isso, deixo o alerta de spoilers a partir do próximo parágrafo. Recomento parar por aqui caso você ainda não tenha lido o livro.

As únicas passagens definitivamente reais do livro são os comentários escritos em itálico ao final de cada capítulo, que trazem a impressão das pessoas sobre a morte de um zelador que trabalhava na escola por mais de trinta anos. O velho solitário, sem amigos ou família, perdeu os pais há muito tempo atrás, provavelmente quando era novo e foi morar com uma mulher que considerava cruel. Ele era muito tímido e introvertido, mas excepcionalmente inteligente. Devido às suas fobias sociais, abandonou uma carreira promissora como professor para trabalhar a noite com a limpeza do local, quando todos os alunos e outros profissionais já tinham ido para suas casas.

De resto, tudo se passa na cabeça de Jake, que parece ter problemas psicológicos que envolvam múltiplas personalidades que o ajudam a lidar com diferentes aspectos de sua vida. Ao longo do livro, são distribuídas diversas pistas, seja por fatos ou pela variação da escrita, que varia de pessoas e flutua entre o singular e o plural. Ele nunca chegou a passar seu telefone para uma mulher no bar, eles nunca namoraram. Ela e outros personagens são versões dele mesmo, tanto que dividem características em comum, como a intolerância a lactose, erupções cutâneas, uso de implantes auditivos, características físicas e traços emocionais.

Agora já mais velho, ele precisa lidar com a possibilidade de continuar sendo um homem solitário para o resto da vida. No final, as diferentes vertentes de sua mente concordam que o melhor é acabar com tudo, não no sentindo do fim de um relacionamento como é sugerido no começo, mas sim o suicídio. Outras questões são passíveis de diferentes interpretações, como a possibilidade de ele ter outras doenças, já que é acometido de fortes dores de cabeças, tem sangramento no nariz, suas mãos tremem, sente cheiro de produtos químicos e gosto metálico na boca.

Também não se sabe quais elementos são baseados em fatos reais de seu passado e quais são totalmente imaginados. Ele seria o homem na janela observando a criança ou se sentiu ameaçado e criou essa imagem? Qual o significado da roupa dela com sangue? E os animais mortos? É possível que ele tenha matado os próprios pais? Nesse sentido, tudo o que eu posso dizer é que recomendo a leitura atenta da obra para que você tire suas próprias conclusões.